Recanto Literário

Qual o proveito das flores postas somente sobre o caixão? Têm mais valor as que são dadas em vida.

Textos


Crônica e café à sombra do cupuzeiro

 

O computador ignora a grafia e por isso assinala a palavra com o característico sublinhado vermelho. Bestinha, ele a vê como erro. Com isso, o que é pior, não assume a própria ignorância. Ao contrário, diz, desavisada e atrevidamente, que estou errado. É isso que significa, todos sabem, o sublinhado vermelho do computador. No caso, ele não reconhece as grafias cupuzeiro e cupuaçuzeiro, embora elas existam. Existe também e ele não reconhece cupuaçueiro. As duas últimas, aliás, estão registradas (os portugueses dizem registadas) no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que, o leitor já sabe, é um dos meus preferidos.

    

Era a manhã de 17 de julho de 2021. Lembro-me porque anotei, certo? Estava tomando café e lendo crônicas de Otto Lara Resende debaixo do meu cupuzeiro ou, como se preferir, cupuaçuzeiro ou cupuaçueiro, quando, levemente carregada pelo vento, uma folha madura caiu, como se cuidadosamente pousasse, entre minhas costas e a cadeira, no momento em que acabava de ler a crônica “A flor no asfalto”, que Otto escreveu e publicou no jornal Folha de S. Paulo em 30 de maio de 1992, uma das que compõem o livro Bom dia para nascer, da Companhia das Letras.

 

Apanhei a folha e, olhando-a, imediatamente (até comentei com a Câmelha, que estava ao meu lado) lembrei-me de Clarice Lispector e sua crônica “O milagre das folhas”, que li pela primeira vez faz alguns anos (em 4 de fevereiro de 2008, para ser exato; anoto, quase sempre, o dia da leitura). Depois, a reli várias vezes, hoje inclusivamente. “Miraculous leaves” é a tradução para o inglês, que li a primeira e única vez – única, até agora; talvez ainda a releia – em outubro de 2013, quando, propositadamente, omiti o dia. Não gostei nem de longe do texto em inglês como gosto do texto em português.

 

Não guardei a folha, porque era bem grande. Tenho, contudo, o hábito, já faz algum tempo, de guardar folhas secas, principalmente do meu cupuzeiro, e usá-las como marca-página de livros. São, assim, semióforos. Cada uma delas é um semióforo, na acepção filosófica do termo. Isso, por sua vez, me fez lembrar da minha crônica “O título do livro e os semióforos”, de 5 de outubro de 2013, e da crônica “Um semióforo”, da jornalista Bruna Mello, lida faz algum tempo na internet. O pensamento voa e muito rapidamente nos leva a lugares e situações diferentes.

 

Bela e poeticamente, Clarice Lispector e Bruna Mello dizem de sua relação com os semióforos, embora Clarice o faça quase acidentalmente. Começa queixando-se de não receber milagres: “Não, nunca me acontecem milagres.” E continua, por linhas e linhas, a sua erudita queixa. Lá pelas tantas, porém, registra: “Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos.” E, mais à frente, a confidência: “Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante.” Bruna, por sua vez, enumera seus semióforos: “Guardanapos, fotos, cartas, pingentes, anéis, ursinhos, copos, e por aí vai. E cada um me traz uma lembrança boa. Na verdade, todos me trazem lembranças de momentos engraçados, momentos inesquecíveis que vivi.”

Valdinar Monteiro de Souza
Enviado por Valdinar Monteiro de Souza em 06/07/2023
Alterado em 04/02/2024


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