Tomar um “cachet”
“Estava com dor de cabeça e tomei um ‘cachet’, para aliviar”; “dá um ‘cachet’ a ele, que passa”. Puxa vida, quantas vezes, desde criança, ouvi essas e outras frases semelhantes, no meio da minha parentela! Meus parentes – os maternos, principalmente, mas não somente eles – falavam e ainda falam isso. Ah, que saudade!
É comum, entre pessoas de origem nordestina, empregar, como substantivo masculino, a palavra “cachet”, que se pronuncia “caché”, com o som aberto de “é”, com o significado de comprimido ou cápsula. É francês. Comprimido, em francês, é “cachet”. O que eu acho estranho é que, a despeito de ser corrente esse uso pelos nordestinos, não encontrei em dicionário algum o registro dessa palavra, nem mesmo como estrangeirismo.
Seria no caso, como é, um galicismo. Galicismo inútil, inteiramente desnecessário – pois temos no vernáculo “comprimido” e “cápsula” –, mas muito usado pelos maranhenses e piauienses, por exemplo. Aliás, é somente em relação a maranhenses e piauienses que, neste caso, posso falar, uma vez que minha mãe é maranhense, de Pedreiras, e meu pai era piauiense, de Canto do Buriti.
O estranho – repito – é que nem os dicionários nem a literatura registram esse uso. Nem mesmo entre os muitos autores nordestinos o vejo. Se há algum registro, não o encontrei, ou dele não me lembro. Todos os registros que encontrei, embora venham também do francês, se referem a cachê (do francês “cachet”), preço pago a artista, a título de honorários, por espetáculo realizado ou coisa que o valha. Contudo, com segurança também o repito, comprimido ou cápsula de medicamento, em francês, é “cachet”.
Assim, “cachet”, significando comprimido ou cápsula, remédio para a dor de cabeça, a dor de dente, ou outro incômodo semelhante, é uma das muitas lembranças da minha infância, adolescência e juventude que carrego com carinho. É como munganga, emboança e tantas outras palavras tão nossas que já não vejo no meio em que hoje vivo. Bate-me uma saudade imensa ouvi-las de quem quer que seja.
Lembro-me, com inconsolável saudade, do meu avô materno, José Monteiro da Silva, único avô que conheci, do meu tio Américo – tio por afinidade, marido da minha tia materna Hosana, mas muito estimado –, e do meu pai, João Belizário de Souza, os três já falecidos. Do tio Américo, que era cearense, lembra-me, como se fosse hoje, o sotaque mais forte de todos com que nos contava piadas e fazia brincadeiras.
Tio Américo, nos meus tempos de criança, lá em São Domingos do Araguaia, Estado do Pará, era dono de tropa de burros. Gostava de nos contar piadas e tirar brincadeiras, enquanto ficava a costurar e encher os talabardões das cangalhas, ou a pôr o milho nas mochilas dos burros para, enquanto os encangalharia na manhã seguinte, alimentá-los. Ele também dizia “cachet”, querendo dizer cápsula ou comprimido.
Valdinar Monteiro de Souza
Enviado por Valdinar Monteiro de Souza em 06/12/2013
Alterado em 06/12/2013