O bem-estar e o hífen
Um grande amigo manifestou por “e-mail” dúvida sobre pôr ou não pôr o hífen na palavra “bem-estar”, pois, consultando as novas regras ortográficas, não conseguiu identificar o devido enquadramento. Respondi a ele que continuará com hífen, como era antes do Acordo de Ortográfico da Língua Portuguesa, de 16 de dezembro de 1990. E como, por falta de espaço e de tempo, no entanto, não lhe expliquei na ocasião o enquadramento, o faço nesta crônica.
“Bem-estar” é um substantivo composto, masculino, singular, cujo plural é “bem-estares”, que continua sendo escrito com hífen, após o Acordo, não só por enquadramento em uma das regras, mas por inclusão expressa da dita palavra, que é uma das muitas que constam expressamente a título de exemplos postos pelo texto do Acordo.
O texto do Acordo, para quem não sabe, foi organizado em 21 tópicos ou divisões chamadas tecnicamente de base e numeradas com algarismos romanos. Assim, vai da Base I, que tem por título “Do alfabeto e dos nomes próprios estrangeiros e seus derivados”, à Base XXI, cujo título é “Das assinaturas e firmas”. E a disciplina do emprego do hífen ocupa três dessas bases, a saber, da Base XV à Base XVII.
“Bem-estar” tem a grafia regulada pela Base XV – “Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares” –, que se divide em sete partes de numeração ordinal. “Emprega-se o hífen nos compostos com os advérbios ‘bem’ e ‘mal’, quando estes formam com o elemento que se lhes segue uma unidade sintagmática e semântica e tal elemento começa por vogal ou ‘h’”, diz a quarta dessas divisões. Após a regra, vem a ressalva de que o advérbio “bem”, ao contrário de “mal”, pode não se aglutinar com palavras começadas por consoante. Por fim, dá alguns exemplos das várias situações, dentre os quais se acha expressamente a palavra “bem-estar”.
O composto “bem-estar”, como se vê, é formado por dois elementos, o advérbio “bem” e o verbo “estar”, que deixam de ser duas palavras simples e passam a formar uma só palavra composta, ou seja, unidade sintagmática, com significado próprio, quer dizer unidade semântica, diferente do significado original delas. Eis a razão do hífen.
Nem tudo, porém, referente ao emprego do hífen ficou assim tão claro no Acordo, motivo por que discordo veementemente de suas regras, embora as respeite como lei que são. Mexeram onde não precisava mexer e ficou ruim. E, demais disso, a interpretação que a Academia Brasileira de Letras deu ao texto do Acordo, para elaborar o novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, “data venia”, piorou a situação. A Academia, interpretando, retirou o hífen de muitas palavras das quais não deveria retirar.
Tal qual o Supremo Tribunal Federal é a autoridade máxima na interpretação da Constituição da República, a Academia Brasileira de Letras é a autoridade máxima em relação ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e à interpretação de acordos sobre a língua. Isso, contudo, não nos tira o direito e a legitimidade de criticar, técnica, respeitosa e fundamentadamente, as decisões de ambas as instituições sobre esses assuntos.
A Academia, com sua interpretação do número 6.º da Base XV, retirou, por exemplo, o hífen dos compostos de três elementos, só o admitindo nas exceções expressamente previstas no texto do Acordo, que são: “água-de-colônia”, “arco-da-velha”, “cor-de-rosa”, “mais-que-perfeito” e “pé-de-meia”. Fora esses casos, palavras compostas de três ou mais elementos ligadas por hífen somente as designativas de espécies botânicas e zoológicas, conforme a regra do número 3.º, como, por exemplo: fava-de-santo-inácio, castanha-do-pará, mico-leão-dourado, andorinha-do-mar. Também alguns topônimos expressamente previstos no texto do Acordo, como, por exemplo: Trás-os-Montes.
Não vejo razão, por exemplo, para se escrever sem hífen o substantivo composto “dia-a-dia”, que assim se transforma na locução substantiva “dia a dia”, com a mesma grafia da locução adverbial de tempo “dia a dia”, de forma que somente o contexto as diferencia, tal qual passou a acontecer com o substantivo composto “tomara-que-caia”, que virou locução substantiva “tomara que caia”, sem hífen, bem como com tantos outros casos semelhantes nos quais não se deveria ter mexido. Penso, sinceramente, que não era necessário fazer o que fizeram nem em relação ao hífen nem ao trema. Teria sido muito melhor deixar como estava.
O Acordo, como já disse acima e em outras ocasiões, é lei e, como tal, de observância obrigatória. Por enquanto, é facultativo desde 1.º de janeiro de 2009, mas depois de 31 de dezembro de 2012 será obrigatório. Embora fosse facultativo fazê-lo, como continua sendo até agora, aderi às novas regras desde as primeiras horas de 1.º de janeiro de 2009. Isso, contudo, nunca significou concordar com elas. Entendê-las e empregá-las por ordenação estatal é uma coisa, concordar com elas é outra bem diferente.
Enviado por Valdinar Monteiro de Souza em 14/03/2012
Alterado em 16/11/2021